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8ª: PARK IN SON / SON IN PARK

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No dia 25 de outubro de 2014 - dia em que meu pai completou 60 anos de idade (entrando na terceira idade) -, realizamos a performanciã PARK IN SON / SON IN PARK: nesta data, eu com 27 anos, meu pai fazendo 60 anos e meu avô paterno (portador do Parkinson) com 89 anos.  

registro da ação (vídeo): 19 minutos

O mal de Parkinson acomete muitos idosos pelo mundo, sendo uma das doenças mais presentes entre os idosos brasileiros - aproximadamente 200 mil -, apresentando diversos distúrbios nervosos (no sono, na fala, nos movimentos, entre outros). É uma doença hereditária - quem sabe de seu futuro? 

Meu avô paterno recebeu há alguns anos o diagnóstico de Parkinson, mas como o estágio da doença ainda não é tão avançado, permite que ele leve uma vida ainda tranquila. Suas restrições estão nas movimentações da mão (para a escrita, para manusear talheres e outras ações que exigem precisão), do joelho e de uma limitação no andar. 

A ideia foi reunir três gerações num parque para desempenharmos um programa performativo de ações variadas, que partem do poético e do simbólico ao gestual e físico. O termo programa performativo é discutido e definido no artigo Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea, da artista Eleonora Fabião e consiste em delimitar ações como campos de experiência, sem ensaios do performer, apenas a sua preparação em todo o processo para a experimentação de ações, combinações, possibilidades, a partir de um ponto disparador dessa performatividade. 

PARK IN SON / SON IN PARK

 

o parque nos filhos, os filhos no parque, esse lugar de encontro, de atividades, de contemplação da natureza. Esse lugar onde os pais levam os filhos para passear. Brincar! 

 

No dia do aniversário do meu pai, uma performance de celebração da vida, de agradecimento aos ancestrais, a tudo o que fizeram para chegar até ao que conheço de mim hoje.

 

Meu pai e meu avô não sabiam do programa performativo. Sabiam apenas que participariam de uma performance. 

A primeira regra de nosso programa foi pedir a cada pessoa/família que passasse por nós, para tirar uma fotografia daquele nosso momento. Quase todas as fotografias foram feitas por desconhecidos, que também paravam para entender o que estava acontecendo. "Ah, esse fio é pra dizer que vocês estão ligados, avô, pai e filho!". 


O registro de fotos e vídeos feito por mim também foi um desafio, pela limitação dos movimentos (explicação a seguir).

 

Nossas ações do  programa performativo  foram as seguintes:

 

1 - O fio 

 

No primeiro momento, saltando do carro, pedi para que esticassem os dedos indicadores. Perpassei um fio branco de barbante por nossos dedos. A partir daquele instante, tudo o que faríamos seria ligado por esse fio. Onde um fosse, os outros teriam de ir. Amarrados. Simbolicamente, esse fio que nos une, genético e Sanguíneo, que vai através do tempo nos perpassando, costurando nossas histórias. Trama de paz e fios: gerações de tempo e espaço. Em relação ao Parkinson, uma ideia de limitação física. A partir desse instante, o movimento de todos estaria limitado, precisaríamos um da ajuda do outro para resolver alguns movimentos, pra seguir o nosso caminho. Andamos conversando até um banco, pra sentar.

2 - Meditação / oração 


Chegando a esse banco, sentamos. Meu avô se cansa facilmente. Lá pedi para que todos fechássemos os olhos. Meditamos brevemente com o som da natureza friburguense ao fundo, no Parque São Clemente - jardins da antiga residência do Barão de Nova Friburgo. Meu avô, morando há tantos anos em Nova Friburgo não sabia dessa informação. Eu conto, ele reflete. Meu pai e meu avô, homens que são exemplos pra mim, bondosos e humildes, com olhos de criança. Com os olhos fechados, peço pra que coloquemos uma de nossas mãos sobre a mão do outro. Nos energizamos. Começo a agradecer meu avô por sua existência, por estar ali participando daquele momento ritualístico e performático. Agradeço por ele ser um homem de coração puro. Meu avô foi agricultor por 79 anos de sua vida, mexendo na terra e fazendo brotar. Agradeço por ele gerar beleza, colher beleza, por ter essa sabedoria de lidar com a terra, tão generosa conosco. Seus olhos fechados tremem. Agradeço por cada ação dele no mundo, por ter criado meu pai da melhor maneira, fazendo o melhor pra seus nove filhos, em tempos difíceis, na roça. Passo a agradecer meu pai, por também ter se esforçado ao máximo para que eu fosse o que sou hoje, por contribuir com meus sonhos, por ser um homem de extrema bondade. Parabenizo meu pai pelo dia dele, desejando que sua entrada neste novo ciclo (essa linha imaginária que, de repente, nos passa para a "terceira idade") seja de tranquilidade, amor e muita saúde. Faço votos de alegria e digo que, no que depender de mim, ele terá uma velhice linda. Depois desse momento, abrimos os olhos sorrindo. Passo a nova instrução.

3 - Histórias e conexão 

 

Entrego um papel para cada um, junto a uma caneta. Peço para que meu avô conte uma história marcante com meu pai, que meu pai conte uma história marcante comigo e por fim, conto um momento marcante com meu avô.

AVÔ > PAI > FILHO/NETO > AVÔ.

Meu avô conta rindo que meu pai foi com amigos "roubar" mexericas num terreno próximo a casa deles, justamente quando meu avô chegava do trabalho no sítio com um saco de laranjas-lima colhidas por ele. Ele deu um puxão de orelha no meu pai, na frente dos amigos. Ele levou esse momento marcante pra ele a vida toda e disse que somente há pouco tempo pediu perdão ao meu pai. Meu pai sorri e diz que ele só estava protegendo: quem sabe não havia no terreno um cachorro grande que pudesse mordê-lo?

Meu pai conta que ficou com remorso num dia em que me levou pra passear de patins, numa rua mal asfaltada e de grande inclinação. Ele disse que me colocou numa ponta da rua, se distanciou e pediu para que eu fosse ao encontro dele. Eu caí de cara no chão, em alta velocidade, trepidando. Esfolei o rosto e ele me levou no colo, sangrando, pra casa.

Eu conto pro meu avô que quando tive o meu diagnóstico de câncer, fui visitar meus avós no dia seguinte para dar a notícia. Eu, que tinha uma relação mais afastada com meu avô nessa época (por ser uma família numerosa, não por algum motivo mais sério), pela primeira vez percebi com encanto o grande carinho que ele sentia por mim, ao abaixar sua cabecinha em profunda tristeza, chorando com a notícia. A partir daquele dia, meu avô rezava um terço diariamente com minha avó e outras pessoas, de joelhos - mesmo sendo uma posição desconfortável para sua idade. Nesse momento em que conto a história, meu avô chora.

 

Depois de contadas as histórias, escrevemos em nossos papéis palavras relacionadas a essas histórias: remorso, perdão, amor, carinho, ferimentos, infância, cuidado com o próximo, fé, doença, cura, etc. Por fim, pedi para que picotássemos esses papéis, em pedaços. Palavras cortadas. Folhas fragmentadas.

4 - Plantio / Cultivo 

 

Saímos do banco e fomos plantar. Meu avô sempre mexeu com a terra. 79 anos na agricultura. Meu pai cresceu vendo isso. Eu não lembro de ter plantado... Tínhamos disponíveis diversas sementes. Meu avô escolheu plantar abóbora. 

Enquanto cavucava a terra, com seus movimentos mais limitados e tremidos, falava de uma reportagem de televisão onde aprendeu que existem mais de 130 tipos de abóbora. Esses assuntos o interessam. Ele contou que seu pai (meu bisavô), certa vez colheu uma abóbora gigante, com quase 100kg, por ter plantado em terreno adubado! Falando em adubo, pedi para que ele colocasse um pouco de nossas palavras picotadas junto às sementes, para que nossas palavras e intenções virassem adubo. Ali estávamos não só plantando algo pro amanhã, gerando natureza a partir do nosso encontro e fazendo germinar novas possibilidades, mas transmutando sentimentos dessas histórias que nos marcaram com o outro. A terra acolhe, modifica, transforma, regenera. E as palavras dos melhores sentimentos iriam estar ali pra colaborar no crescimento da vida plantada.

Meu pai plantou tomates, dizendo que é um dos alimentos preferidos dele, mas que não pode comer em excesso por ter cálculos renais. Eu plantei sementes de amor-perfeito - gosto de flores, cores, odores. E ao plantá-las, falei que tinha escolhido essa semente por nosso amor de gerações ser esse amor-perfeito, esse elo bonito que temos.

Sempre que plantadas as sementes, um gole d'água sobre a terra e uma oração/intenção falada para aquele momento, agradecendo a terra. Conectamos.

 

5 - Bolas / O corpo responde 

Fomos para o coreto do parque e lá enchemos balões de ar (bexigas). Meu avô não teve força para soprá-los. Enchemos alguns e lá mesmo no coreto, jogamos nós três uma espécie de "três cortes", vôlei leve de balão. Movimento fluido, leveza.

Meu avô, que não sai de casa e assiste muito à programação da televisão, parecia uma criança ao brincar conosco. O fato de estarmos amarrados, limitou por vários momentos a liberdade de nosso movimento em direção ao balão. Quando se abre muito o braço, puxa-se o dedo do outro, que puxa o do outro. Meu avô tenta chutar o balão, o joelho não sobe. Ele diz que não é mais jovem, que não consegue mais. Os movimentos foram lindos, um balé no coreto. Meu pai se diverte, eu também. Os balões estouram. Saímos do coreto e fomos para um gramado, agora com uma bola dura, de futebol. Essa bola diferente levou os nossos movimentos aos pés e às pernas. Meu avô conta que jogava muito futebol na infância e adolescência e que seu pai não gostava, por achar que aquilo não levava a nada. Ele diz que foi um craque da bola, até o dia em que deslocou seu joelho ao cair num buraco no campo de futebol, formado pela pata de um boi que tinha passeado por lá num dia de chuva - uma pisada que o barro depois endureceu nessa forma. 
 

Jogamos bola. A bola vai longe, todos nós temos que correr para buscá-la. Correr não pode. Por pouco a bola não cai no lago. Temos que entender e controlar a potência de nosso chute, para que a bola não escape do nosso domínio e não canse a todos em sua busca. Os movimentos de todos ficam mais equalizados e mais comedidos. Entendemos o quanto podemos: temos que driblar a nossa vontade de chutar dentro de nossas vontades e energias para acompanhar a energia do movimento limitado. Meu avô perde muitas bolas, suas pernas não acompanham.

Surpreendentemente, consegue fazer uma embaixadinha, também resgata uma bola com um movimento difícil, de pôr o pé pra trás e salvar a bola. Vamos andando com a bola, um passando pro outro. Ele se cansa, paramos. Mas eu também esquento, suo. Penso nele.

6 - Final / inscrição 

 

Por fim, voltamos até uma árvore do espaço onde plantamos nossas sementes e fizemos a inscrição de nossas iniciais em seu caule: 

BE - Borlido Elias. BEF - Borlido Elias Filho. M - Marcelo (por pouco um "Borlido Elias Neto"!).

Marcados por muito tempo na natureza. Inscritos na matéria viva. Uma marca que fica no local, mostrando que passamos por ali, que passamos por aqui, que ainda estamos passando, que seremos passado. Amor.

 

Ali dei a cada um mais um pedaço de papel, agora para escrever o que cada um deseja pro futuro do outro, em palavras soltas. Agora em ordem inversa: eu para o meu pai, meu pai para meu avô, meu avô para mim: EU > PAI > AVÔ > EU.

Depois de escritas as nossas cartas, pedi para que soltássemos nossos dedos desses nós do fio que nos amarrava. Disse que aquele fio era simbólico, pois o nosso real fio de ligação nunca seria desamarrado, nunca arrebentado. O que nos une, mesmo depois de nossas passagens, ainda será elo, eterno, terna idade, eternidade.

Esse fio de barbante perpassou as nossas folhas de papel com intenções pro outro. Amarramos por fim essas "cartas" no tronco da árvore inscrita com nossas iniciais. Demos um duradouro abraço de carinho e finalizamos a nossa celebração.

Uma energia radiante partindo do peito pro infinito.

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