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 4ª: RITUAL'IDADES 

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| no texto a seguir, relatos desses momentos e motivações e elementos utilizados na performance-ritual de cada uma das senhoras participantes |

 Primeira performanciã do projeto realizada a partir de uma formação de comunidade artística-social em oficina. 

 

 

 

 RITUAIS EM AÇÃO: 

“Os rituais são pensamento em/como ação” (SCHECHNER, p. 58), caracterizados por convenções e codificações transmissíveis. Já Michael Piccuci expande ainda mais o significado da palavra ritual para incluir não somente as ações físicas, mas também dimensões energéticas como “intenção, visualização e realização”, se configurando como uma “ação santificadora através de um determinado processo” (PICCUCI, 2005, p.1). Para ele, o “Ritual, em parceria com a compreensão científica de campos de energia, dá origem a um novo contexto para viver uma vida mais plena e mais rica”, sendo “uma chave para desbloquear recursos incríveis, como cura e mais alegria no bem viver”. (p.2).

Desta forma, nos encontramos na sala de aula, no horário convencional, para nos concentrarmos e revermos pontos da performance-ritual de cada um. Direcionamo-nos para o espaço frontal do Hospital e nos espalhamos pelo pátio, levando cadeiras e os elementos necessários para cada um realizar seus planos de ações e energias. O tempo estabelecido para a execução dos rituais era de 30 minutos.

Piccuci (p.14) também nos apresenta uma nova experiência expansiva de ritual, como recurso a ser utilizado em nossa contemporaneidade para “apontar e capacitar cada passo da jornada de nossa vida, onde quer que nos leve” – afirmando que só precisamos aceitar que essa possibilidade existe. Piccuci (p.75) estabelece em seu livro Ritual como Recurso: Energia para uma vida vibrante alguns pontos percebidos como essenciais para a preparação e desenvolvimento de um ritual, enumerando quatro formas de intenção (sintonia e harmonização consigo mesmo; foco em sua ação; amplificação; direcionamento de energia) e cinco sabedorias essenciais:  1 - Ser verdadeiro consigo na ação; 2 - Conectar-se com seus recursos espiritualmente e/ou comunitariamente; 3 – Ter uma intenção; 4 – Ter crença, fé no que faz; 5 – Usar recursos para crescer e fortalecer) . Sendo assim, o ritual se completa dentro de um intuito maior, não se esvaziando em uma forma, mas adquirindo uma função e uma importância em sua realização. 

Aqui descrevo todas as experiências realizadas, utilizando, para tal, relatos dos acontecimentos e fotografias que registraram estes momentos. Em muitas das ações feitas foi bem percebida a sintonia com algumas destas questões citadas por Piccuci. Numa percepção minha dentro da proposta, outras ações tinham caráter menos ritualístico e se caracterizavam mais como uma performance baseada em elementos de memória. Mas não caberia a mim aqui, talvez, julgar o que de fato se determinou mais ou menos como ritual, uma vez que a ação realizada com esse intuito (com todos esses pontos apresentados e dialogados com ênfase inúmeras vezes nos processos da oficina) só poderia ser compreendida no íntimo de cada performer, fazendo sentido com suas constatações pessoais e com a importância que deram àquele momento específico. O ritual ajuda a lembrar, homenagear e passar por situações: ali, certamente, desempenhavam isso com leveza e propriedade. Aqui explano um relato expositivo do que cada uma das senhoras propôs realizar a partir das informações debatidas em aula – com poucas observações minhas fora do plano da ação, me distanciando, assim, e abrindo espaço para o leitor receber de forma mais fiel e clara possível. 

Martine Segalen, etnóloga e antropóloga, realiza um estudo sobre ritos e rituais realizados na sociedade contemporânea, apresentando diversas teorias de autores clássicos e daqueles que pensam as ritualidades nos dias de hoje. A autora comenta que “(...) é possível identificar uma reconfiguração das práticas rituais e constatar a permanência das mesmas” (2002, p. 34). Ela constata que o ritual, atualmente, perdeu muito de seu caráter público e está restrito, cada vez mais, a eventos específicos. 

Realizar essa ação no hospital também reflete um curioso ponto: estes idosos frequentam o hospital não para tratarem suas doenças físicas, mas sim para se desenvolverem artisticamente, trabalharem a memória, se encontrarem, participarem de práticas terapêuticas como o Reiki, adquirirem conhecimentos e maior integração na sociedade. Realizar essa atividade performática no espaço conhecido do hospital é também realizar um ato de cura, de transposição de barreiras de relação e exposição íntima de suas memórias de forma pública, implicando uma potencialização de si. 

Segalen (idem, p. 35-36) também constata que os rituais não são para serem utilizados como uma “espécie de kit analítico para uso”, mas que contribuem como um guia para delimitar práticas no cotidiano. A autora afirma que há um deslocamento da prática ritual do centro do social para a sua margem. Esta afirmação vai de encontro com a utilização deste “guia” aqui utilizado por uma parcela social marginalizada e periférica, para auxiliar a ativar sua participação no funcionamento da sociedade. 

 

Começo por descrever a performance-ritual de Jandira, que escolheu rememorar o ritual do dia de seu casamento, experimentado por ela aqui dentro de outro ritual, no presente. Sua ação era simples: com elementos originais ligados à memória (como a grinalda de seu casamento na cabeça e o convite de seu casamento, o terço e um buquê de flores em suas mãos), caminhava por todo o espaço delimitado para o acontecimento das ações num passo lento e ritmado, como se estivesse entrando numa igreja. Beth Lopes comenta como as opções do performer podem ser materializadas numa ação envolvendo a memória: 

 

No trabalho com o seus arquivos, conscientes ou inconscientes, o performer vai buscar formas de materializar aquilo que sente daquilo que relembra. O discurso que se constitui é heterogêneo, fragmentado e disperso por envolver os diferentes sentidos pelos quais ele é afetado. (2009, p. 137-138)

 

Silenciosa e compenetrada rememorava este dia marcante para sua vida, experimentando ritualmente as saudades de seu falecido marido. Vez em quando algum espectador transitando pelo espaço questionava o porquê daquela senhora estar andando pelo pátio do hospital com aqueles elementos.

Outra senhora, Suely, sentada em uma cadeira, costurava remendos em uma roupa – atividade essa ensinada por sua mãe e realizada, segundo ela, a mais de 60 anos. Estes remendos representavam sua vida e à medida que os costurava, silenciosamente relembrava de fatos passados. Beth Lopes afirma: “Não são importantes as lembranças em si, mas o impulso acionado para lembrá-las (…)” (LOPES, 2009, p.138). Se alguém se aproximasse de Suely para entender o que se passava, ela poderia contar algumas de suas memórias. 

Maria Elisa configurou seu ritual com alguns elementos figurativos que ligou à sua história pessoal. Ela disse que o que mais sente saudades de sua infância é das histórias contadas por sua mãe. Com isso, aprendeu a ser uma contadora de histórias para seus filhos e agora para seus netos. Seus filhos são hoje bombeiros (um é tenente-coronel e o outro major) e seus netos querem também essa profissão. Maria Elisa comentou que sempre esteve disposta a ajudar o outro e que, de certo modo, influenciou seus filhos a seguirem esta carreira – da mesma forma que sua mãe a influenciou em sua adoração por contar histórias. Para sua performance ritual, Maria Elisa, com roupas cotidianas, vestia um quepe de bombeiro e trazia à sua volta diversos brinquedos de seus netos relacionados à esse universo profissional – como carrinhos de bombeiro –,  convidando pessoas de todas as idades para que ela pudesse ler trechos do livro “Chapeuzinho Amarelo”, de Chico Buarque. Assim, contava através de sua oralidade uma história infantil conhecida e através de seus elementos a sua história pessoal – inserindo ali seu passado (com a memória de sua mãe), o passado e o presente (com a memória de seus filhos) e o presente e o futuro (ao mencionar seus netos). 

 

"São vários discursos em um só. Cada ação, olhar, andar ou sentir está associado a alguém que de alguma forma se insere na sua história, na da sua coletividade, na do seu tempo e lugar. O discurso do performer constitui sua linguagem a partir do contexto simbólico da sua memória, ligando materialmente, inconsciente e ideologicamente. O tempo, passado, presente e futuros são totalmente intercambiáveis. Na multiplicação dos tempos e espaços dos fragmentos da memória, se criam dobras que se dobram sobre si mesmas numa sequência de remissões ao conjunto a que as lembranças pertencem". (LOPES, (2009, p. 137)

Já Marta decidiu realizar um ritual para homenagear uma grande amiga e comadre já falecida, chamada Lêda Maria. Ela faria 77 anos naquele mês, a dois dias da realização de seu ritual. Como tem saudades dos momentos vividos com ela, resgatou para o nosso presente um ritual cotidiano sempre realizado pelas duas: jogar dominó – jogo que Marta aprendeu com a amiga Lêda. Para a ação, Marta trouxe o dominó, uma foto antiga das duas juntas e um maço de cigarros da marca que Lêda sempre fumava. 

Com duas cadeiras, Marta ficou a esperar pessoas que aceitassem a sua proposta de simplesmente jogar dominó. Diversas pessoas vieram participar do jogo e em todas as vezes em que Marta se comunicava com seus parceiros de jogo, independente de seus gêneros, ela os chamava de Lêda, criando um estranhamento à ação. “Honrar rituais através de um nome sempre amplifica a energia, enquanto um sentimento de gratidão por aquilo que é bom em nossas vidas, seja lá quais forem os nossos desafios atuais, ajuda a santificar nossa experiência” (PICCUCI, 2005, p.20). 

Lúcia, vestida com roupas e uma faixa na cabeça com cores do Brasil, trouxe para sua ação uma medalha conquistada há anos no atletismo do Flamengo. Trazia em seu pescoço a medalha de 4º lugar em corrida e contava a quem ela encontrasse a sua vitória. Após contar sobre este momento de seu passado, subia numa mini escada de dois degraus (caracterizando um pódio) e solicitava que o espectador em relação colocasse em seu pescoço uma nova medalha, a “Medalha do Coração Vivo” – realizando um evento-ritual como nova cerimônia de premiação. Ao receber a medalha em formato de coração, pedia palmas do público, agradecia, com pompa, as honras recebidas e realizava um discurso sobre a vitória de ter chegado à velhice com saúde e alegria. Simone de Beauvoir (1970, p. 7) comenta que os jovens, por volta dos 18 ou 21 anos, são admitidos à sociedade cercados de “rituais de transição”, em diversas culturas – inclusive nas comunidades tribais, onde as transições são bem marcadas: “É mal definido o momento em que começa a velhice, variando de acordo com as épocas e os lugares. Em parte alguma se encontram ‘rituais de transição’ que estabeleçam um novo estatuto.” Lúcia realizou a entrega de sua própria medalha algumas vezes, com as pessoas que encontrava, para reconhecerem sua vitória, realizando o seu próprio ritual de aceitação da velhice, para esta nova fase que vive em seu ciclo vital. Além de reconhecer-se na velhice, sua vitória está em encontrar-se leve e com boas condições de comemorar sua existência e suas memórias com gratidão.

Sandra é uma aluna fascinada por fotografia. Em todos os eventos, aulas e viagens do Grupo Renascer, ela fotografa e vende suas fotos para todo o Grupo, se tornando assim, a fotógrafa oficial do Renascer. Ela não somente tira fotografias de todos os momentos do Grupo, mas também de momentos de sua vida – se caracterizando como uma espécie de ritual de registros de momentos. Para sua ação performática, ela havia decidido expor em seu corpo algumas fotos, numa espécie de roupa-mural que confeccionou, como um parangolé autobiográfico de fotos suas desde criança até hoje. Sandra portava um cartaz onde se lia: “Quer saber sobre as fotos? É só perguntar!”. Ela tinha como plano de ação contar sua vida para algum interlocutor e ao final, tirar uma foto self com a pessoa, registrando novos instantes com desconhecidos. Porém, no dia da performance-ritual coletiva, ela disse ter preferido utilizar fotos de momentos importantes pra ela no Renascer. Entendo sua troca de opção, mas acredito que seria muito mais potente para ela, na sua experimentação performática, exibir sua vida em fragmentos pendurados em sua vestimenta, como um grande álbum de memórias acessíveis, trazendo uma carga energética muito mais densa para a ação. O único fator que mudou em seu programa, foi agora falar de momentos passados do Renascer e de sua gratidão por ter entrado nesse Grupo, que transformou sua vida com as atividades que ela desempenha por lá – motivos dos quais eu também compreendo a importância.

Thereza também optou pela fotografia como elemento principal de sua ação ritual, mas seus motivos eram bastante diferentes. Durante sua adolescência e juventude, foi empregada de uma casa, onde também morou. Cuidava dos dois filhos de uma senhora – pouco mais novos que ela – e era como uma mãe para os meninos. Depois de parar de trabalhar nesta casa, perdeu o contato com os meninos, que já tinha como filhos e nunca mais os viu. Nesta performance, Thereza quis ritualizar boas lembranças passadas com eles. Para isso, vestida com um avental de cozinha sobre a roupa, trazia consigo uma fotografia antiga dos meninos – que hoje têm mais de 60 anos de idade. Além da fotografia, um pequeno boneco, simbolizando o cuidado que tinha enquanto babá. Beth Lopes, ao abordar o papel da memória numa performance, explana que:

 

O espaço da memória é um lugar de trânsito de ideias e sentimentos, um lugar de subjetividades, de revelação da interioridade do performer na razão direta da sua exterioridade. As emoções que o performer perpassa na sua pele, na sua carne, na sua expressão inscrevem uma ‘matriz de si’. (2009, p.137)

 

Com um discurso próximo ao de mães que perdem seus filhos e se reúnem em grupos que procuram crianças desaparecidas, Thereza perguntava às pessoas que se aproximavam se elas conheciam algum daqueles meninos e se poderia ajuda-la a encontra-los. Obviamente ninguém saberia dizer precisamente, através de uma foto de infância antiga, se tal pessoa é conhecida e onde vive atualmente. Mas curiosamente, um participante da ação de Thereza disse que conhecia o mais velho da foto, que havia virado médico. Não sabemos se o ocorrido foi um caso de extrema coincidência, um engano ou uma invenção do participante da ação ritual, porém, enquanto performance, no vivo acontecimento do aqui-agora que proporciona surpresas inusitadas, este fato deu um novo sentido à ação da performer. Thereza depois me disse que pessoas sugeriram a ela colocar notícias em jornais e anúncios em rádios, procurando um encontro com os meninos. Ali ela sabia que não encontraria com eles – apenas em suas memórias, o que era o maior intuito –, mas continuou a procura-los e apresentar uma distante lembrança significativa para sua vida.  

A última descrição de ritual é o da Vera – e essa ação talvez tenha sido a mais facilmente de identificar como um ritual, pelo caráter espiritual dado a ele e por suas escolhas convencionais. Seu ritual consistia em transmutar energias negativas de seu passado, momentos difíceis que ainda estavam dificultando seu avanço emocional para uma nova fase de sua vida e defeitos seus que considera prejudiciais para ela. Vestida toda de branco, na intenção de purificação e limpeza espiritual e com uma faixa na cintura de cor roxa (simbolizando a chama violeta da transmutação, do mestre ascencionado Saint Germain, da Grande Fraternidade Branca), Vera sentou-se ao chão, concentrada numa ação muito internalizada e focada, sem muito contato com outras pessoas, próxima a uma árvore, em cima de um longo pano branco com desenhos de flores. Diversos elementos compunham seu cenário espiritualista, exagerando nos simbolismos. De acordo com Schechner (2011, p.62): “Rituais são superdeterminados, redundantes, exagerados e repetitivos”. Seu ritual era facilmente acessado por quem observava, devido aos vários códigos que assumiram uma forma mais direta com o elemento espiritual na ritualização – e que aqui constituíam também um poderoso conteúdo de significados pessoais.

Havia um fogareiro de barro com velas acesas – onde jogava papéis com escritos de coisas que gostaria de transformar, levando à purificação pelo fogo e elevando a mudança através da fumaça produzida. A cada papel queimado, preces e intenções eram faladas em murmúrios que não eram ouvidos. Seus olhos às vezes se fechavam e nós, como espectadores, podíamos sentir que ela estava acessando algum lugar muito interessante e sincero para a sua busca ritualística. Beth Lopes divide conosco a seguinte reflexão:

 

"O trabalho do performer consiste em se confrontar, dia a dia, com a percepção de si. Amplia-se, desta forma, o poder de observação de si e dos outros. A sua expressão se constitui não só em um traço sensível do seu processo fisiológico e psicológico mais íntimo, mas também é a expressão individual resultante de um conjunto de relações sociais (…)" (2009, p. 138)

 

Trazia em sua roupa inúmeras estrelas pretas (representando momentos negativos de sua história) com miolos verdes penduradas por fios de nylon em diversas alturas – verdes “pois sempre há uma esperança de mudança dentro do que é negativo”, segundo Vera. O que é verde precisa maturar. Com uma tesoura, Vera cortava os fios dessas estrelas e as jogava para trás, sobre o ombro, como se despedisse dessas negatividades sem olhar, partindo para novos momentos. Esses novos momentos eram representados por outras estrelas que surgiam, prateadas: essas estrelas eram retiradas de dentro de sua roupa, também penduradas em fios de nylon. À sua frente, duas mandalas que foram confeccionadas em aulas de arte terapia: uma toda elaborada com cacos de espelho – que fazia com que nos enxergássemos fragmentados ao observá-la – e outra feita com diversas chaves que colecionou em sua vida – representando uma abertura de vários caminhos. Também uma peça de vidro circular, com o desenho de um triângulo (fé, amor e caridade, segundo explicou) contido dentro de um círculo (representando o divino, a unicidade). Vera trouxe para seu ritual a sua realidade, sua vivência espiritualista e intenções fortes que realizou com verdade e crença na ação, afirmando ter sido de grande importância pra ela ter embarcado em sua ação. Ela não interagiu com outras ações que aconteciam ao redor, mas recebia os que vinham se informar sobre o que fazia.

 

"O que é importante saber por agora é que, com todos os rituais, há elementos importantes poderosos, como o sentido de um lugar, mantendo as ações rituais distintas do mundano, evocando recursos e invocando estilos de fala (mesmo que as palavras permanecem internalizadas e não seja utilizada a voz)". (PICCUCI, 2005, p.20).

Ao pensar nos rituais apresentados neste dia (26 de maio de 2014), percebi o quanto a ideia de performar a conexão do interno de cada uma das senhoras com o externo do ambiente – dentro de uma noção do espiritual presente em ações organizadas em estruturas subjetivas –, foi uma ferramenta importante para a apreensão de cada momento vivenciado na oficina e para a realização dessa primeira ação prática coletiva. 

Segalen (2002, p.17), em citação ao linguista Émile Benveniste, informa que: 

 

(...) a palavra ‘rito’ teria vindo de ritus, que significa ‘ordem prescrita’, termo associado a formas gregas tais como artus ‘ordenação’, ararisko ‘harmonizar’, ‘adptar’ e arthmos, que evoca o ‘laço’, a ‘junção’. Junto com a raiz ar que deriva do indo-europeu védico (rta, arta), a etimologia remete essa análise à ordem do cosmo, à ordem das relações entre os deuses e os homens, à ordem dos homens entre si.

 

Faz-se importante atualizar para o leitor que estas ações se deram num breve espaço de tempo em um local onde passam equipes de profissionais da saúde, transeuntes da rua e pacientes. Estávamos num pátio de entrada de ambulâncias, o que fez com que nossa ação fosse criticada pelos seguranças do espaço, que recebem ordens do diretor geral do Hospital. Um funcionário exaltado tentou interromper nossa ação por estarmos atrapalhando o espaço do hospital – isso enquanto harmoniosamente as ações eram realizadas. Em tom de voz exagerado me pediu para que “tirasse aquela mulher sentada dali”, se referindo à Vera – justamente a mais distante da entrada do hospital, próxima à árvore. O que será que sua imagem lhe causou? Vera disse que algumas pessoas leram sua ação com preconceito jocoso, se referindo a “tratar de macumba”. Será que seu ritual, especificamente, o incomodou por uma impressão semelhante à essas ouvidas pela performer? Uma das coordenadoras do Grupo Renascer interviu para que a ação se realizasse em seu tempo estipulado, sem barreiras, e foi ameaçada pelo funcionário que dizia que ela estaria assumindo um risco com o diretor do hospital. Mesmo assim, demonstrou firmeza e se sentiu orgulhosa ao ver as senhoras desempenhando belamente esse trabalho performático. 

Contratempos ocorrem naturalmente quando algo “fora da ordem” natural e corriqueira se estabelece e estes fatos desestabilizadores, essas novidades no espaço ordinário, tornam a performance ainda mais potente, com os rumos que as pessoas envolvidas tomam a partir de tais ocorrências. A única ambulância que entrou no espaço (trazendo a palavra Vida estampada em grandes letras destacadas em suas laterais) conseguiu desempenhar seu trabalho perfeitamente, com as senhoras tomando cuidado e prestando atenção com o movimento do automóvel. Ao entrar a ambulância no espaço, conversei brevemente com o motorista sobre nossa ação e ainda a profissional de saúde que o acompanhava no banco do carona colocou a medalha no pescoço de Lúcia, participando de uma ação. Um paciente idoso e muito debilitado foi removido do hospital em uma maca, entrando às pressas nessa ambulância. Tudo acontecendo no mesmo espaço. Rituais normais da vida comum, corriqueiras histórias do cotidiano da cidade, momentos que correspondem às experiências diversas de nossos ciclos de vida. Mesmo se instaurando como “desordem” para os funcionários da segurança que trabalham diretamente sobre ordens da direção, para os realizadores e espectadores-participantes, nos planos pessoal e público, “o ritual faz sentido, visto que ordena a desordem, atribui sentido ao acidental e ao incompreensível, confere aos atores sociais os meios para dominar o mal, o tempo e as relações sociais. Sua essência é misturar o tempo individual e o tempo coletivo” – comenta Segalen (2002, p. 31-32).

Ao pensar nos rituais apresentados neste dia (26 de maio de 2014), percebi o quanto a ideia de performar a conexão do interno de cada uma das senhoras com o externo do ambiente – dentro de uma noção do espiritual presente em ações organizadas em estruturas subjetivas –, foi uma ferramenta importante para a apreensão de cada momento vivenciado na oficina e para a realização dessa primeira ação prática coletiva. 

Segalen (2002, p.17), em citação ao linguista Émile Benveniste, informa que: 

 

"(...) a palavra ‘rito’ teria vindo de ritus, que significa ‘ordem prescrita’, termo associado a formas gregas tais como artus ‘ordenação’, ararisko ‘harmonizar’, ‘adptar’ e arthmos, que evoca o ‘laço’, a ‘junção’. Junto com a raiz ar que deriva do indo-europeu védico (rta, arta), a etimologia remete essa análise à ordem do cosmo, à ordem das relações entre os deuses e os homens, à ordem dos homens entre si".

 

Faz-se importante atualizar para o leitor que estas ações se deram num breve espaço de tempo em um local onde passam equipes de profissionais da saúde, transeuntes da rua e pacientes. Estávamos num pátio de entrada de ambulâncias, o que fez com que nossa ação fosse criticada pelos seguranças do espaço, que recebem ordens do diretor geral do Hospital. Um funcionário exaltado tentou interromper nossa ação por estarmos atrapalhando o espaço do hospital – isso enquanto harmoniosamente as ações eram realizadas. Em tom de voz exagerado me pediu para que “tirasse aquela mulher sentada dali”, se referindo à Vera – justamente a mais distante da entrada do hospital, próxima à árvore. O que será que sua imagem lhe causou? Vera disse que algumas pessoas leram sua ação com preconceito jocoso, se referindo a “tratar de macumba”. Será que seu ritual, especificamente, o incomodou por uma impressão semelhante à essas ouvidas pela performer? Uma das coordenadoras do Grupo Renascer interviu para que a ação se realizasse em seu tempo estipulado, sem barreiras, e foi ameaçada pelo funcionário que dizia que ela estaria assumindo um risco com o diretor do hospital. Mesmo assim, demonstrou firmeza e se sentiu orgulhosa ao ver as senhoras desempenhando belamente esse trabalho performático. 

Contratempos ocorrem naturalmente quando algo “fora da ordem” natural e corriqueira se estabelece e estes fatos desestabilizadores, essas novidades no espaço ordinário, tornam a performance ainda mais potente, com os rumos que as pessoas envolvidas tomam a partir de tais ocorrências. A única ambulância que entrou no espaço (trazendo a palavra Vida estampada em grandes letras destacadas em suas laterais) conseguiu desempenhar seu trabalho perfeitamente, com as senhoras tomando cuidado e prestando atenção com o movimento do automóvel. Ao entrar a ambulância no espaço, conversei brevemente com o motorista sobre nossa ação e ainda a profissional de saúde que o acompanhava no banco do carona colocou a medalha no pescoço de Lúcia, participando de uma ação. Um paciente idoso e muito debilitado foi removido do hospital em uma maca, entrando às pressas nessa ambulância. Tudo acontecendo no mesmo espaço. Rituais normais da vida comum, corriqueiras histórias do cotidiano da cidade, momentos que correspondem às experiências diversas de nossos ciclos de vida. Mesmo se instaurando como “desordem” para os funcionários da segurança que trabalham diretamente sobre ordens da direção, para os realizadores e espectadores-participantes, nos planos pessoal e público, “o ritual faz sentido, visto que ordena a desordem, atribui sentido ao acidental e ao incompreensível, confere aos atores sociais os meios para dominar o mal, o tempo e as relações sociais. Sua essência é misturar o tempo individual e o tempo coletivo” – comenta Segalen (2002, p. 31-32).

Para encerrarmos nossas ritualizações de memória, dada a meia hora combinada, passeei pelo espaço com uma sanfona tocando a ciranda “Cabelos Brancos”, de Lia de Itamaracá, convidando as senhoras, como combinado previamente, a despertar de suas experiências e formarem, em silêncio, uma grande roda no centro do espaço do pátio. Durante a oficina finalizamos todos os dias as atividades com a mesma ciranda, porém, desta vez, estávamos num espaço interno e com outras pessoas. Essa roda envolveu uma equipe médica, idosas, as coordenadoras do Grupo Renascer e diversos pacientes e passantes que ali estavam naquele momento, somando mais de trinta pessoas numa expansiva ciranda de comemoração da vida. Marcamos rapidamente o ritmo e os passos da dança na música com todos e encerramos, em alta energia de felicidade cantando com força a letra da música, que ecoava as seguintes palavras:

 

"Quando eu me lembro dos meus dezoito anos
Que eu pensava somente em namorar

Agora a idade vem chegando 

E a velhice começou me atrapalhar.

Mas eu vivo na beira da praia,
Ouvindo as pancadas do mar...
Minha vida não é mais aquela e agora eu vou é cirandar!

Cirandei, cirandar,

Cirandei, cirandei, cirandar!"

 

 

 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 

 

BEAUVOIR, Simone de. A velhice – A realidade incômoda. Tradução de Heloysa de Lima Dantas - 2ª ed. São Paulo - Rio de Janeiro: Ed. Difel, 1976.

 

LOPES, Beth. A performance da memória. São Paulo: Revista Sala Preta número 9, 2009.

 

PICCUCI, Michael. Ritual as Resource: energy for a vibrant Living. California: North Atlantic Books, 2005.

 

SCHECHNER, Richard. Performance e antropologia de Richard Schechner. Seleção de ensaios organizada por Zeca Ligièro. Rio de Janeiro: Mauad X, 2012.

 

SEGALEN, Martine. Ritos e Rituais Contemporâneos. Rio de Janeiro: ed. FGV, 2002.

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